segunda-feira, 5 de maio de 2014

Retomando a polêmica do trote: a violência que pode gerar mais violência


Passada a controvertida polêmica do trote no curso de Engenharia Civil, que foi assunto por dias nas redes sociais, temos a proposta de nesse texto retomar tal polêmica, não de forma confusa e sincrética como foram alguns debates em torno do ocorrido, mas agora procuramos aprofundar na análise desse fenômeno a fim de apontar um posicionamento sintético sobre a prática dos trotes. Portanto, não pretendemos entrar no dilema da espontaneidade ou coação do calouro ao beber ou da repercussão que isso tomou nos jornais da cidade, mas sim de apresentar um debate mais de fundo a respeito dos trotes, expondo a função que os mesmos cumprem na universidade.
Os primeiros registros de trotes datam de mais de 600 anos, ainda na Idade Média, em países da Europa, e posteriormente foram importados para o Brasil com a vinda da família real e criação das primeiras faculdades, no século XIX, sob forte influência da universidade de Coimbra. Desde o termo “trote” tal prática já se inicia com um cunho pejorativo. O “trote”, refere-se à marcha dos cavalos que aludindo para o meio universitário, significa que os veteranos teriam que “domesticar” os calouros, ensinando-os a marcha de maneira correta. Já a prática de cortar os cabelos também é oriunda desse período, mas tinha a finalidade higiênica, os calouros raspavam a cabeça enquanto medida profilática contra a propagação de doenças. Assim, embora o ser humano tenha avançado em termos civilizatórios em relação ao ser da Idade Média, ainda convivemos com práticas medievais em pleno século XXI.
O medievalismo atual, que teve sua expressão na engenharia civil, mas que outrora já se expressou em outros cursos, teve repercussão na mesma semana em que o DCE e vários estudantes puxavam um ato contra a violência no Feira VI (e que foi sucedida por uma greve da PM). Para além de alguns quererem sanar a violência com mais violência, ou seja, com a presença de um maior quantitativo de policiais (braço repressor do Estado) no bairro, sem irem na raiz do problema da violência, muitos outros que clamavam contra a violência se posicionavam a favor dos atos violentos em trotes (incluindo-se nos atos violentos a violência física ou a violência moral).
Tal contradição ocorrida na mesma semana nos mostra que a “Civil” não é “barril”. “Barril” mesmo é ficarmos acuados em nossas casas em meio a violência gerada por uma sociedade completamente desigual. “Barril” mesmo é a situação de diversos trabalhadores que construíram com suas mãos essa universidade e que talvez nem vejam seus filhos e netos acessarem ao conhecimento por ela produzido. “Barril” mesmo é ver os filhos da classe trabalhadora passarem pelo perverso processo seletivo (e depois lutarem para permanecerem na universidade) que só contempla 9% dos jovens de 17 a 24 anos (incluindo os que tem acesso as instituições privadas), e que deveria ser amplamente comemorado e acolhedor ao invés de um tratamento para verdadeiros bichos.
Mesmo que tenham um fim integrativo, tais trotes sadomasoquistas, violentos e humilhantes não têm qualquer justificativa plausível na atual sociedade para serem praticados, a não ser, para reproduzirem, na prática e ideologicamente, a violência e humilhação que sofremos dia-a-dia nesse mundo desumano.
Trotes desse tipo não podem ser compreendidos como algo positivo, pois reforçam justamente a lógica do capital de colocar o trabalhador contra trabalhador, estudante contra estudante, ser humano sobre ser humano, partindo de uma posição hierárquica do mais poderoso e menos poderoso, como se um ser humano fosse mais importante que outro pelo fato de ter mais conhecimento ou mais experiência em determinada coisa. Dessa forma, essa prática de violência e humilhação não deve ser levada adiante pelos “veteranos” de segundo semestre, que por terem sofrido ao entrar queiram descontar naquele que está entrando. É inconcebível que um aluno mais novo tenha como referência um sujeito que usou de humilhação e violência para intimidar os colegas, só pelo fato de serem calouros, e que assim como ele passou pelo mesmo processo seletivo para ingressar na universidade.
Dessa forma, defendemos uma recepção acolhedora aos calouros, lembrando que tantos outros que também lutaram para tentar entrar na universidade estão do lado de fora do pórtico. Devemos nos colocar enquanto colegas que podem contribuir na formação acadêmica, política e humana, presando pelo acolhimento dos filhos e filhas da classe trabalhadora que adentram a uma universidade pública, que não é gratuita e que passa por uma constante precarização.
Sabemos que esse não foi o primeiro e nem será o último fato que traz à tona a questão dos trotes na universidade. No entanto, precisamos avançar no debate, sair da engraçadinha e traiçoeira aparência das coisas e buscar compreende-las em sua essência, pois tais atos reproduzem justamente a lógica da sociedade que criticamos tanto e que vai de encontro a humanidade que estamos lutando para construir.


  
“Lutamos então por um mundo em que sejamos todos socialmente iguais, humanamente diferentes e completamente livres” (Rosa Luxemburgo).





Coletivo Lutar e Construir
Feira de Santana – BA
05 de maio de 2014

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