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domingo, 5 de abril de 2015

Sobre a fusão dos coletivos Lutar e Construir e Outros Outubros Virão

Esta carta tem como intuito esclarecer o motivo da fusão entre os coletivos Lutar e Construir e Outros Outubros Virão, bem como os elementos que permitiram esse processo e seus objetivos.

Histórico dos Coletivos

O Coletivo Lutar e Construir (LC) nasceu da necessidade de fundamentar teoricamente os membros do Diretório Acadêmico de Educação Física da Universidade Estadual de Feira de Santana-BA. O coletivo surgiu como um grupo de estudos e, posteriormente, tornou-se um coletivo político, composto por estudantes de Educação Física, para atuar na Universidade (local de estudo), na perspectiva de melhores condições de estudo e da construção de um movimento estudantil combativo.

O coletivo passou por um processo de expansão para os cursos de História e Medicina, pela necessidade de ampliar a política e a inserção na Universidade; bem como durante espaços na Executiva Nacional de Estudantes de Educação Física, tanto na Regional 3 (Nordeste) quanto nacionalmente. Assim, teve contato com estudantes de Educação Física da UNEB-Alagoinhas e, após um tempo de debate, estudo, atuação conjunta e concordância política, resolvemos criar um núcleo do LC em Alagoinhas. Essas expansões ampliaram as possibilidades de intervenção junto aos estudantes. Com o tempo, alguns dos estudantes se formaram, tornando-se trabalhadores, e permaneceram no coletivo por concordância política, auxiliando na formação, intervenção e organização do LC. Vale ressaltar que os trabalhadores do Lutar e Construir não tinham concordância com outras organizações atuantes em Feira de Santana.

O coletivo Outros Outubros Virão (OOV) surgiu no final de 2008, com o objetivo de formular sobre o movimento estudantil e as possibilidades de organização deste dentro e fora das entidades, como em centros acadêmicos, diretório central dos estudantes e entidades nacionais. Essa necessidade foi movida pelo Congresso dos Estudantes da UFPR daquele ano, pois demonstrou a urgência de se pensar sobre a atuação dos estudantes e possibilitou constatar que faltava entender o porquê da militância: aliar a prática à teoria. O nome do coletivo homenageia a revolução russa de outubro de 1917, a primeira revolução socialista, de inspiração marxista, a ser colocada em prática no mundo. Desde o surgimento, o coletivo passou por amplo processo de expansão, atuando em diversos locais de estudo e movimentos de área, colocando em prática uma militância voltada à reconstrução de um movimento estudantil combativo, com foco na formação política, no trabalho de base e na aliança com as demais categorias da classe trabalhadora, rumo à superação desta sociedade.

O Coletivo Lutar e Construir atuava na Universidade Estadual de Feira de Santana, dentro dos respectivos cursos (Educação Física, Medicina e História), nos diretórios acadêmicos, no diretório central dos estudantes ou fora desses instrumentos; em pautas específicas e no movimento geral da Universidade e outros relacionados, como a pauta do transporte e da saúde. O núcleo Alagoinhas, por sua vez, atuava na Universidade do Estado da Bahia no curso de Educação Física. O LC também se inseria na Executiva Nacional de Estudantes de Educação Física (ExNEEF) e na Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), bem como na Articulação Nacional (AN), criada em 2012, como espaço de troca de acúmulos teóricos e organizativos entre os coletivos Contra Corrente, Resistência Socialista, Lutar e Construir e Outros Outubros Virão.

Os espaços de organização estudantil nos quais o OOV se insere são: Movimento de área/executiva e seus instrumentos (regionais, encontros, FENEX), organizações por locais de estudo (OLE) e seus instrumentos (coletivos de base, grupos de estudo, CA/DAs), Articulação Nacional, comandos específicos para momentos de mobilização (blocos de luta por transporte público) e Movimento Geral. Nesse sentido, destacamos a atuação na ExNEEF, na DENEM e na Articulação Nacional, que possibilitaram a aproximação política entre os coletivos.

Os tópicos desenvolvidos a seguir expressam pontos centrais da concordância política entre os coletivos, seja na formulação teórica ou na prática política dirigida e avaliada por essa formulação, que por vezes é alterada pelas experiências práticas da militância.

Concepção de Movimento Estudantil

O Movimento Estudantil (ME) é policlassista, podendo se identificar com ambos os projetos possíveis nesta sociedade, e por si só não defende os interesses da classe trabalhadora nem tampouco é revolucionário. Essa concepção de ME tem como base a concepção de universidade. Esta que, apesar de surgir como um espaço da burguesia, para o seu acesso ao conhecimento e a cultura, tem se tornado, cada vez mais, um espaço composto pelo proletariado. Isso se deve às necessidades do capitalismo de formar força de trabalho qualificada, onde cabe expandir o acesso a uma universidade cada vez mais precarizada e de ensino fragmentado. Logo, a partir do momento que o ME toma pra si os interesses da classe proletária, pode levar grandes contribuições para a luta dos trabalhadores.

Concebemos, portanto, os estudantes enquanto trabalhadores em formação, que ao concluírem seus cursos, ingressarão no mundo do trabalho. Neste sentido, o ME é um importante espaço para avançar nas conquistas estudantis, desenvolver e formar militantes socialistas e contribuir com a luta dos trabalhadores, articulando as demandas e mobilizando sua base em torno das pautas que atacam diretamente a classe trabalhadora.

É importante frisar que, dentro do ME, não estaremos voltados somente para a pauta de Educação e Universidade, pois assim nos fecharíamos em nossas próprias questões. Também precisamos nos voltar para outras pautas que estejam relacionadas com o ME, como orçamento público, transporte, saúde, combate às opressões (gênero, LGBTfobia, racismo, etc.).

Sendo assim, entendemos que o ME tem como objetivo contribuir com a classe trabalhadora, relacionando as pautas dos trabalhadores em formação com a luta política mais geral entre as classes sociais, para a edificação de uma nova sociedade.

Análise do Ciclo PT¹

Não queremos e não podemos negar a história da luta de classes no Brasil, sobretudo recentemente. O Partido dos Trabalhadores (PT) foi fruto e protagonista do acirramento das contradições no último grande ciclo de lutas do país, sendo necessário portanto analisar as transformações no seu projeto e a atual configuração do partido, entendendo que essa questão está em movimento e trás elementos que devemos lutar para serem superados.

Apesar de seu forte caráter classista inicial, e levando-se em consideração os elementos contraditórios ao longo de todo o ciclo PT, percebe-se que houve uma gradativa migração da esfera de luta e organização concreta para a esfera da disputa institucional, concretizada na década de 90. Das lutas nas ruas, transferiram-se os embates para os acordos de gabinete e as disputas eleitorais com um fim em si mesmas.

O instrumento foi burocratizado e perdeu o projeto histórico socialista, deixando como herança um conjunto de práticas que a esquerda ainda não conseguiu eliminar completamente, a saber, o hegemonismo, o personalismo, o aparelhamento partidário, o dispêndio de energias militantes para a criação de maiorias artificiais em congressos para ganhar votações, entre outras.

O governo Lula foi um marco de expressão da mudança de posição de classe desses instrumentos, para o lado do empresariado. Se nos posicionamos claramente em defesa do projeto histórico da classe trabalhadora, nos situamos no lado oposto ao governo, nesse atual momento. Entendemos que o PT atrelou-se aos limites da institucionalidade burguesa, imerso na via eleitoral, aliado aos setores empresariais, com sucessivos recursos programáticos e, na prática política, abandona assim a referência ao socialismo e substitui pelos “direitos”, dentro da ordem capitalista.

Dentro desse contexto, o movimento estudantil também foi cooptado por uma prática de militância semelhante. Compreendemos que a União Nacional dos Estudantes (UNE) desempenhou um papel importante na história do movimento estudantil brasileiro. A entidade se reorganizou em 1979, no ensejo da reorganização de toda a esquerda brasileira e, desde esse período, vem trilhando um caminho semelhante ao da Central Única dos Trabalhadores e do PT. Entretanto, apesar de seu forte caráter classista inicial, esses instrumentos migraram da esfera de luta e organização concreta para a esfera da disputa institucional, acordos de gabinete e disputas eleitorais. Na história mais recente os exemplos maiores foram a defesa, por parte da UNE, das principais contrarreformas da educação superior, como o Pro-Uni e o REUNI, reflexos do financiamento do governo federal e da cooptação da entidade. A UNE, assim, não cumpre mais a função de instrumento de luta do movimento estudantil, e negar a sua burocratização e os rumos que tomou, é negar a entidade por completo.

Na tentativa de dar respostas ao movimento estudantil geral e buscando ser o contrário do que a UNE vinha sendo, cria-se a Assembleia Geral dos Estudantes Livre (ANEL)². Todavia, essa nova entidade foi construída em um congresso com pouca participação dos estudantes brasileiros e fora de um contexto de grandes mobilizações das bases estudantis – ou seja, a concretização da entidade não se realiza a partir de uma luta prática, diária e massiva, com amplo entendimento político, de estudantes que veem a necessidade de sua criação. Portanto, a ANEL não reflete as necessidades reais e concretas do ME e acaba por repetir alguns vícios do último ciclo de lutas.

Concepção de Estado

A sociedade capitalista, na qual vivemos, é caracterizada por possuir, cada vez mais, a divisão em duas classes distintas: os detentores dos meios de produção e os trabalhadores, que precisam vender a sua força de trabalho aos primeiros para garantirem condições mínimas de sobrevivência. Esta relação é marcada por uma contradição essencial: aqueles que realmente produzem os elementos essenciais à sobrevivência da humanidade têm esses elementos expropriados, destinados a uma minoria que deles usufrui. Isso gera interesses distintos e inconciliáveis, resultando inevitavelmente em atritos entre as duas classes.

Desta relação fundamental surge o Estado, instituição que na aparência serve para manter a justiça, a liberdade e a democracia, mantendo a neutralidade e conciliando os interesses de exploradores e explorados. Ora, se esses interesses são diretamente opostos e inconciliáveis, na essência, o Estado é fruto da luta de classes, e serve aos interesses de dominação, coerção e opressão da classe trabalhadora, ora de maneira assistencialista, ora de maneira repressora, mantendo a exploração da força de trabalho e a reprodução da atual forma de organização social.

“O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável de classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis (LENIN, 2010)”.

A democracia, que na aparência se apresenta como um direito dos trabalhadores, se configura enquanto uma maneira de dominação da burguesia, uma forma de administrar os negócios. Neste sentido, o Estado democrático é a forma mais adequada de a burguesia garantir seus interesses e se perpetuar como exploradora do proletariado (os trabalhadores que vendem sua força de trabalho). Isso, porque devido a seu poder econômico, a burguesia garante no parlamento os representantes necessários para garantir seus interesses, ao mesmo tempo em que o sistema democrático permite que a população participe do processo, o que dá uma a sensação de plena participação política e neutralidade do Estado escondendo seu caráter de classe.

Portanto, consideramos que disputar o Estado no atual momento histórico, dado o seu caráter de defensor dos interesses burgueses, não se configura enquanto uma tarefa revolucionária da esquerda. Precisamos, enquanto esquerda, retomar o projeto revolucionário e inseri-lo na pauta do dia da classe trabalhadora, esta que, em sua maior parte, ainda reproduz a ideologia burguesa. Assim, nossa principal tarefa desse momento é o trabalho de base: devemos nos reinserir nos espaços de organização dos trabalhadores e dos estudantes e disputá-los para que tomem para si o projeto da classe proletária, além de nos empenhar na superação desse ciclo de lutas e de seus vícios.

Atuação política em âmbito nacional

Olhando para o cenário político brasileiro, sentimos a necessidade da reorganização da esquerda, por entender o processo de fragmentação e os vícios da atual militância, fruto do projeto democrático e popular. O processo de fusão que aqui tornamos público não é fácil, nem tampouco deve ser superficial, mas partiu de uma concordância política e uma atuação conjunta de longa data. Ressaltamos que isso não é comum no atual momento histórico, no qual as fragmentações da esquerda são mais frequentes. Não julgamos esse processo como uma questão moralista, e entendemos que os balanços e avaliações são necessários, e as rupturas acontecem.

Nos propomos a tornar o movimento estudantil combativo e aliado aos interesses da classe trabalhadora, potencializando a atuação através da inserção nos locais de estudo. Apesar de a inserção em um determinado local (cidade e/ou universidade) ser decisiva para a atuação junto aos trabalhadores em formação, a realidade local possui elementos específicos e limitados em relação à conjuntura nacional, trazendo alguns entraves. A atuação a nível nacional viria no sentido de ampliar a nossa leitura/intervenção junto ao conjunto do movimento estudantil, pela presença de pessoas de diferentes locais, que partilham da mesma política e com elementos de atuação distintos. Um coletivo nacional também proporciona uma articulação política necessária para a atuação em Executivas de curso, blocos de luta, comandos de greve, dentre outros, permitindo o compartilhamento de experiências político-organizativas e ampliando a capacidade de intervenção, de forma mais ordenada.

Além disso, um coletivo nacional amplia o debate das questões fundamentais para a esquerda classista e combativa no ME, contribuindo com a formação dos quadros do coletivo e aumentando a capacidade de formulação, ao promover sínteses mais sólidas que guiam e são guiadas pela nossa atuação.

Questão do nome/política

A fusão dos estudantes do coletivo Lutar e Construir com o Outros Outubros Virão se deu por conta dos princípios políticos comuns aos coletivos, da atuação conjunta em algumas frentes (Articulação Nacional, DENEM e ExNEEF) e da confiança política mútua ao longo do processo.

A decisão de manter o nome Outros Outubros Virão para o coletivo surgiu por ter maior consolidação e inserção a nível nacional, mesmo feito o debate sobre o nome, entendemos não ser uma questão central que impediria a possível fusão, quando se leva em consideração o projeto político da classe trabalhadora, a coerência política e a atuação que o coletivo em questão apresenta.

Avaliamos que em ambos os coletivos tínhamos elementos teórico-práticos em perspectiva a esse projeto, assim como uma concepção de ME classista, combativo e ligado aos interesses dos trabalhadores em formação.

Como dito anteriormente, o LC era composto por estudantes e trabalhadores, mas, com o processo de fusão entre os dois coletivos, os trabalhadores do LC – por apresentarem limites quanto a atuação no movimento estudantil – não farão parte do OOV, mas iniciarão a tarefa de construir a Intersindical (Instrumento de Luta e Organização da classe trabalhadora) no estado da Bahia, mantendo o nome Lutar e Construir para este novo coletivo – dos trabalhadores.

Relação com a Intersindical – Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora³

A Intersindical é uma Organização Sindical nacional, presente em todas as regiões do Brasil, que coerente com o processo histórico das Organizações que dela fazem parte, tem contribuído decisivamente no processo de reorganização do movimento sindical brasileiro, “tendo como princípios fundamentais: a independência em relação ao Capital e seu Estado, autonomia em relação aos partidos políticos, e tendo a organização pela base com um instrumento fundamental para a luta de classes”, além da formação política como ferramenta potencializadora.

Acreditamos ser esse um instrumento que fortalece as lutas da classe trabalhadora, por romper com a lógica de militância da CUT, se desvinculando do Estado e voltando sua atuação para a base sindical, imprimindo um enfrentamento direto aos interesses do capital. Por isso, os trabalhadores que integram o Lutar e Construir decidiram compor esse instrumento.

Dessa forma, ressaltamos que a fusão não altera a política do coletivo, seja na atuação prática ou na formulação teórica, por conta da concordância política já expressa. Entendemos que a atual conjuntura, de fragmentação da esquerda e da prática de militância resultante do último ciclo de lutas, coloca a tarefa de construir o Movimento Estudantil classista, combativo e atrelado ao projeto político da classe trabalhadora, partindo da inserção nos locais de estudo e da construção das pautas em conjunto com os estudantes.


1Período de lutas compreendido entre o final da década de 1970, com a derrocada da ditadura militar, quando as reivindicações dos trabalhadores eram pautadas em greves e manifestações de rua, e a ascensão do referido partido ao governo, que está em curso

2 Para melhor compreensão de nossa posição em relação a ANEL, ler o texto: Entre o Atraso e a Precocidade, Entre o Velho e o Novo: Nem UNE nem Nova Entidade

3 http://www.intersindical.org.br/

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